Não é de hoje
que Clarice Lispector me encanta. E ao me
aventurar na leitura do livro ‘Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres’, logo
me vi ainda mais encantando com a sutileza
de uma escrita intensa. Nos personagens Lóri e Ulisses, há uma intrínseca
necessidade da descoberta. O mais bonito de tudo é a descoberta que acontece em
seu tempo, sem pressa, com um medo necessário e uma permissividade lenta. É
difícil definir uma escrita tão rica e que tanto me emociona.
Destaco apenas
dois trechos nesse momento, pois foram os que mais me tocaram e certamente não
apenas a mim, mas a todos que possivelmente já leram sua obra.
[...]
"Lóri ligou o número de telefone:
- Não poderei ir, Ulisses, não estou bem.
Houve uma pausa. Ele afinal perguntou:
- É fisicamente que você não está bem?
Ela respondeu que não tinha nada físico.
Então ele disse:
- Lóri, disse Ulisses, e de repente pareceu
grave embora falasse tranqüilo, Lóri: uma das coisas que aprendi é que se deve
viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de,
se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para
frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora
de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para
você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu
corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira,
com a alma também. “Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto
tempo for preciso.”
[...]
Noto nesse
trecho o respeito ao tempo que Ulisses dá
para Lori nessa grande aventura que é a
vida, e me veio idéia de um
aprendizagem em busca de um prazer de ‘apenas ser’ que ambos buscavam. Logo
adiante outro trecho me toca, e compartilho abaixo:
[...]
- Eu disse para
você _ Ulisses, estou sendo.
Ele examinou-a e
por um momento estranhou-a, aquele rosto familiar de mulher. Ele se estranhou,
e entendeu Lori: ele estava sendo.
- Eu também,
disse baixo Ulisses.
Ambos sabiam que
esse era um grande passo dado na aprendizagem. E não havia perigo de gastar
este sentimento com medo de perdê-lo, porque ser era infinito, de um infinito
de ondas do mar. Eu estou sendo, dizia a árvore do jardim. Eu estou sendo,
disse o garçom que se aproximou. Eu estou sendo, disse a água verde na piscina.
Eu estou sendo, disse o mar azul do Mediterrâneo. Eu estou sendo, disse o nosso
mar verde e traiçoeiro. Eu estou sendo, disse a aranha e imobilizou a presa com
o seu veneno. Eu estou sendo, disse uma criança que escorregara nos ladrilhos
do chão e gritara assustada: mamãe! Eu estou sendo, disse a mãe que tinha um
filho que escorregava nos ladrilhos que circundavam a piscina. Mas a luz se
aquietava para a noite e eles estranharam a luz crepuscular. Lori estava
fascinada pelo encontro de si mesma, ela se fascinava e quase se hipnotizava.
[...]
E assim, percebo
o quanto é difícil ser, o quanto isso nos assusta, nos aprisiona, nos impede de
ir mais além... Ler Clarice é uma reflexão de si mesmo, uma tentativa de se
identificar com algo que sentimos como um todo, mas que ela escreveu em
palavras.
Não é à toa que
os trechos de Clarice Lispector fazem o maior sucesso nas redes sociais, mas
apenas lendo sua obra é que teremos o real sentido dos seus fragmentos.
[Sobre a felicidade]
''Lóri estava suavemente espantada. Então
isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram
úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me
transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o
que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda,
que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de
espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco
e me assusta. Não. Não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah milhares de
pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa
desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu
de Ulisses quase correndo: ele era o perigo “
Enfim... Refletir é preciso!
Clenio Lopes
Fonte:
Clarice Lispector. Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres. ed. Rocco, 1998.
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