domingo, 16 de setembro de 2012

Apesar de... Estou sendo.



Não é de hoje que Clarice  Lispector me encanta. E ao me aventurar na leitura do livro ‘Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres’, logo me vi ainda mais encantando com a sutileza  de uma escrita intensa. Nos personagens Lóri e Ulisses, há uma intrínseca necessidade da descoberta. O mais bonito de tudo é a descoberta que acontece em seu tempo, sem pressa, com um medo necessário e uma permissividade lenta. É difícil definir uma escrita tão rica e que tanto me emociona.
Destaco apenas dois trechos nesse momento, pois foram os que mais me tocaram e certamente não apenas a mim, mas a todos que possivelmente já leram sua obra.
[...]
"Lóri ligou o número de telefone:
- Não poderei ir, Ulisses, não estou bem. Houve uma pausa. Ele afinal perguntou:
- É fisicamente que você não está bem?
Ela respondeu que não tinha nada físico. Então ele disse:
- Lóri, disse Ulisses, e de repente pareceu grave embora falasse tranqüilo, Lóri: uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. “Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.”
[...]
Noto nesse trecho o respeito ao tempo que Ulisses dá  para Lori nessa grande aventura que é a vida, e me veio  idéia de um aprendizagem em busca de um prazer de ‘apenas ser’ que ambos buscavam. Logo adiante outro trecho me toca, e compartilho abaixo:
[...]
- Eu disse para você _ Ulisses, estou sendo.
Ele examinou-a e por um momento estranhou-a, aquele rosto familiar de mulher. Ele se estranhou, e entendeu Lori: ele estava sendo.
- Eu também, disse baixo Ulisses.
Ambos sabiam que esse era um grande passo dado na aprendizagem. E não havia perigo de gastar este sentimento com medo de perdê-lo, porque ser era infinito, de um infinito de ondas do mar. Eu estou sendo, dizia a árvore do jardim. Eu estou sendo, disse o garçom que se aproximou. Eu estou sendo, disse a água verde na piscina. Eu estou sendo, disse o mar azul do Mediterrâneo. Eu estou sendo, disse o nosso mar verde e traiçoeiro. Eu estou sendo, disse a aranha e imobilizou a presa com o seu veneno. Eu estou sendo, disse uma criança que escorregara nos ladrilhos do chão e gritara assustada: mamãe! Eu estou sendo, disse a mãe que tinha um filho que escorregava nos ladrilhos que circundavam a piscina. Mas a luz se aquietava para a noite e eles estranharam a luz crepuscular. Lori estava fascinada pelo encontro de si mesma, ela se fascinava e quase se hipnotizava.
[...]
E assim, percebo o quanto é difícil ser, o quanto isso nos assusta, nos aprisiona, nos impede de ir mais além... Ler Clarice é uma reflexão de si mesmo, uma tentativa de se identificar com algo que sentimos como um todo, mas que ela escreveu em palavras.
Não é à toa que os trechos de Clarice Lispector fazem o maior sucesso nas redes sociais, mas apenas lendo sua obra é que teremos o real sentido dos seus fragmentos.

[Sobre a felicidade]
''Lóri estava suavemente espantada. Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não. Não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo “

Enfim... Refletir é preciso!

Clenio Lopes

Fonte: 
Clarice Lispector. Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres. ed. Rocco, 1998.

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